Para o fim do inverno

vilarejo

Vilarejo

Marisa Monte

 

 

Há um vilarejo ali

Onde areja um vento bom

Porque apesar de ter chovido nesse inverno, o vento aqui é sempre bom. E, quando ele sopra, qualquer um se enche de vida.

Na varanda, quem descansa

Vê o horizonte deitar no chão

Porque apesar de quase não existirem mais varandas, descansar aqui é ver o horizonte deitar-se no chão, e se você olhar para o outro lado, ele se deita no mar.

 

Pra acalmar o coração

Porque apesar de nossa insegurança cotidiana, é quando você sai daqui que sobrevém a sensação de que o coração só se acalmará na volta.

Lá o mundo tem razão

Porque apesar de sermos essencialmente emocionais, não perdemos a razão por pouca coisa… talvez por carnavais e campeonatos de futebol, mas nunca por pouco.

Terra de heróis, lares de mãe

Porque apesar da realidade que embrutece, sorrimos e vivemos com um heroísmo latente, e nossos lares são nossos fortes de batalha.

Paraíso se mudou para lá

Porque apesar de um dia ele ter se localizado num tal Jardim do Éden, após a expulsão de nossos pais primitivos, para algum lugar o paraíso deveria ir… encontrou paragem certeira aqui.

 

 

Por cima das casas, cal

Frutas em qualquer quintal

Porque apesar de convivermos com o contínuo contraste e com a proximidade entre o luxo e as palafitas, em qualquer casa, os frutos da cidade são a sua essência instigante e única.

Peitos fartos, filhos fortes

Sonho semeando o mundo real

Porque apesar da vergonha que sentimos diante dos fatos diários, nossos peitos estão fartos da alegria de aqui termos nascido, e os filhos dessa terra não fogem à luta pelo que é seu.

 

Toda gente cabe lá

Palestina, Shangri-lá

Porque apesar de sermos provincianos, temos o bairrismo mais cosmopolita do país e toda gente cabe aqui até não sei quando, e pelas ruas você nunca deixará de encontrar alguém que caiu aqui e se apaixonou.

Vem andar e voa

Vem andar e voa

Vem andar e voa

Porque apesar de andarmos voando pelas ruas do centro, sempre encontramos tempo para uma olhada mais atenta às nossas belezas, sejam elas naturais, construídas ou humanas… não sei qual delas mais intensa.

 

 

Lá o tempo espera

Porque apesar do mundo, temos um ritmo próprio… nem acelerado, nem muito lento… temos nosso tempo.

Lá é primavera

Porque até no calor infernal de janeiro, nas chuvas de fevereiro ou nesse frio incomum de hoje as flores se abrem e a cidade é sempre perfumada com o mais original aroma carioca.

Portas e janelas ficam sempre abertas

Pra sorte entrar

Porque apesar dos cadeados, do crime organizado e do medo, há sempre uma fresta esperando para ser invadida pela sorte, pedindo para que ela ali faça morada e seja a blindagem das portas e das janelas.

 

 

Em todas as mesas, pão

Porque apesar da falta de oportunidades igualitárias não nos faltam formas justas de conseguirmos nosso pão quotidiano com um bom-humor singular.

Flores enfeitando

Os caminhos, os vestidos, os destinos

Porque apesar do vermelho-tijolo que toma conta de nossas encostas ainda temos um pedaço de floresta que se colore em qualquer dia do ano. Porque apesar de todos os dias termos uma reclamação, somos imensamente gratos pelo destino que aqui nos trouxe e mantém.

E essa canção

Porque apesar do cansaço e da contrariedade sempre temos uma canção para tudo, seja uma praia, uma rua, uma garota de um certo bairro, um dia bom ou o que nos der no coração.

 

 

Tem um verdadeiro amor

Para quando você for

Porque apesar do senso de autopreservação, quem entra aqui não sai sem receber aquilo que temos de melhor…

 

Vem andar e voa

Vem andar e voa

Vem andar e voa

Vem andar e voa

Porque não há apesar em deixar o carro na garagem, optar por andar e sentir-se voando, entorpecido por uma atmosfera ímpar, digna de idealização.

Este texto foi originalmente postado no primeiro Texto e Contexto, no dia 06/07/06. Hoje, deixando mais um inverno para trás com uma manhã chuvosa, parei para ouvir “Vilarejo” e achei válido postá-lo novamente, com pequenas modificações.

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Michael Jackson e Daniel Azulay (?!)

Michael e Daniel

Aproveitando o momento oportuno, já que a mídia só fala no rei do pop, há pouco mais de vinte e quatro horas ido dessa para a melhor, faço do habitual post ficcional um momento confessional. Antes que mil coisas passem por sua cabeça (tarde demais), eu não sou e nem fui fã de Michael Jackson. Reconheço sim seu talento singular, ainda ouço algumas coisas do Jackson 5, mas o pop que ele fez não era tanto a minha praia.

 Não seria louco de negar, contudo, que minha geração ainda foi influenciada por sua música. Vindo por tabela, dos mais velhos, cresci sim escutando as faixas de Off the Wall (1979), mas minhas lembranças me levam ao lançamento de Thriller (1982). Minha mãe o comprou na época do lançamento e, confesso que dela herdei aquilo que hoje intitulo de “promiscuidade musical”. Perdoem-me aqueles que não gostam do termo, mas acho que ser eclético não descreve bem como ajo em relação à música. Aqueles que me conhecem sabem do que eu falo.

 A primeira e simples confissão está no inenarrável prazer que eu tinha de levar a agulha da vitrola, nessa época uma CCE que ficava linda com as luzes vermelhas acesas no escuro da sala à noite, até o final da última faixa do lado A desse disco. Talvez você ainda não entenda o porquê, mas compreenda a situação. Não tenho culpa, garanto, mas nasci sacana por natureza. E todo irmão sacana gosta mesmo é de espezinhar sua irmãzinha mais nova, coitada. A bendita música era a faixa-título do álbum recordista, e tinha exatos cinco minutos e cinquenta e sete segundos (naquela época, com trema). Eu, moleque que só, não queria ouvi-la, muito menos imitar sua coreografia, visto que eu era bem pequeno. Por mais que eu achasse o clip maneiríssimo, minha memória infantil não me permitiria tanto. Tudo que eu desejava era conseguir acertar a agulha no exato momento em que a macabra gargalhada dava fim à música. Não servia se fosse um segundo antes. E todo esse esforço era apenas pra ver minha irmã correndo pela casa, louca de medo do monstro que ria alto. Eu sei, eu sei, eu não prestava desde então. Mais legal ainda era se minha mãe estivesse perto. A pobre criança de cachinhos dourados grudava nas pernas de sua salvadora e gritava apavorada. Como diz o povo do Rappa, era “o silêncio que precede o esporro”, mas valia cada microssegundo da aventura. Foi mal, irmã, mas era bom demais.

 Passa o tempo, e estamos no dia das crianças de 198?, e eu com sete anos. Nessa época, morava em uma vila incomum em Campo Grande. Não aquele tipo de vila que é um corredor de casas, mas com uma geografia de condomínio, com ruas, praças, uma associação de moradores e até um rio. Eu me sentia sortudo por morar em frente ao campo de futebol, que hoje não existe mais, e à sede dessa associação. Nesse dia festivo, como de costume, rolou a festa das crianças e estávamos lá eu e minha irmã de cachos louros e olhos cor de mel (a natureza não é justa, insisto) – ela já sem medo do Michael, e eu dividido entre a timidez que me acompanha e a marra de artista que me persegue (acho que nada mudou, mas sigamos).

 Num dado momento, anunciaram as brincadeiras que dariam prêmios às crianças que as vencessem. Nem acredito que estou contando isso, mas o fato é que havia uma competição de quem dançava mais parecido com o Michael Jackson. Eu até queria que isso fosse uma baita mentira, mas não é. Depois de muita insistência, little Wellington foi convencido a participar da tortura (voz da timidez falando). Uma vez em cena, sob o som de Billie Jean, a chuva molha quem a ela se expõe. Garanto que até arrisquei um Moonwalker que ficou bem direitinho (voz da marra). Dançando bem ou mal, todas as mães estavam ali para torcer por seus filhos, a minha não seria diferente em corujice. Palmas para esse, palmas para aquele, disputa acirrada não sei contra quem, e little Wellington levou a parada.

 A brincadeira tinha sido concebida pra ter duas “categorias”, as dos micros de até 6 anos, e a dos crescidos com mais de 7, mas não havia meninos em número suficiente, o que nos fez todos dançarmos juntos. Eu, que estava longe de ser bobo, já sabia o que eram os super-prêmios: uma bola dente-de-leite para os menores de 6, e uma coleção de livros do Daniel Azulay para os maiores de 7. Na hora de me entregarem a merecida recompensa, me vem aquela destinada aos fedelhos. “Como assim?!”, pensava eu. Daquela bola eu já tinha, além do mais nunca fui tão apaixonado por futebol a ponto de querer duas dentes-de-leite. Se ainda fosse uma de basquete… Mais intenso do que isso é lembrar que minha paixão pelos livros sempre foi maior do que pela pelota.

Nunca fui bom de bola, em compensação argumento é algo que não costuma me faltar desde a infância, e em dois minutos estava lá o pirralho argumentando com a organização do evento que seu presente estava trocado. Para eles, criança gostava era de brinquedo. Eu, porém, queria os livros naquele momento. Era uma caixa com três volumes em capa dura, cada um deles com contos ilustrados, atividades de desenho e confecção de brinquedos, piadas e charadas. Um espetáculo. Enquanto não estava com eles em minhas mãos não sosseguei. E uma vez que já estavam, corri para casa, guardei na estante e voltei pra aproveitar a festa.

 Com a alegria renovada, e com os livros que me acompanharam durante uns bons anos (foram devidamente doados às crianças seguintes da família), naquele dia das crianças aprendi que com um pouco de sacrifício e de exposição, pode-se chegar onde se quer. Eu não queria de forma alguma pagar o mico de dançar na frente de todo mundo, mas já que eu fui quase empurrado, pelo menos tinha que ter a compensação de levar o que queria pra casa. Hoje, acho que só eu lembro a vergonha que senti, mas para ter histórias para contar é preciso recorrer ao inusitado, ao que está guardado, às lembranças remotas, sejam elas de medo, de alegria ou de conquistas que, para uma criança, eram verdadeiras batalhas com zumbis num cemitério de Thriller.

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“Ô, Cride, fala pra mãe que tudo que a antena captar meu coração captura.”

maisa

Motivado pelo post do Bruno Medina, na semana passada, em seu Instante Posterior, resolvi me manifestar com base na polêmica envolvendo menina Maisa e o ultraconhecido apresentador, investidor e dono de meio mundo Silvio Santos (SS).

 Nas duas últimas semanas, o caro leitor já deve ter se deparado com algumas dezenas de matérias e ouvido outras tantas opiniões sobre o fato de o apresentador ter feito a menina prodígio chorar no palco. Medina, no referido texto, até propõe o movimento “Free Maisa”, para que se devolva a infância a quem é de direito. Mas hoje quero ir um pouco além do que se mostra de imediato. Não quero questionar se a conduta de SS é contrária ao Estatuto da Criança e do Adolescente, muito menos se os pais de Maisa são permissivos ou não. Deixemos as consequências de lado e nos atenhamos às causas.

 Vamos falar sobre o conteúdo dos programas desta reconhecida emissora, sob a regência contínua do Homem do Carnê?

 Não é de hoje que absurdos são vistos nos programas de auditório do SBT. Num primeiro flashback, vamos ao ano de 1985, ao Tudo por Dinheiro, atração que foi exibida até 1989 e retornou em 1991 com o nome de Topa Tudo por Dinheiro. Com o impagável bordão “Quem quer dinheiro?” éramos expostos a cenas no mínimo desnecessárias. Você pode argumentar, leitor, que assistir a um canal é algo voluntário, tão quanto submeter-se aos quadros que mostravam que as pessoas realmente topavam tudo por dinheiro. Humilhação? Desrespeito pela condição alheia? Não posso afirmar. São só questões. Responda-me, por favor, o que você acha. Eu, que não sou dos maiores patriotas, não seria capaz de fazer gaivotas com a moeda nacional e jogá-las a um público afoito. Eu, que não sou tão altruísta como deveria, não seria capaz de fazer o público que me dá audiência passar por provas vexatórias.

 Voltemos no tempo um pouco mais. As noites de domingo no início da década de 80 já eram disputadas entre o Fantástico e o Show de Calouros. As duas atrações já eram veiculadas antes de eu nascer, de forma que, enquanto crescia, estava submetido às escolhas dos meus pais. Isto significa que, em alguns domingos, SS e seu júri invadiam minha sala. Nada demais em um programa de auditório com o formato típico da década de 70, no estilo show de variedades. Candidatos a cantores, dubladores, artistas circenses e outras mil possibilidades eram vistos toda semana. Mas, eram realmente necessárias aquelas performances de transformistas?!

 Numa época em que os programas começavam com um comunicado de indicação etária, em que Roque Santeiro ainda não podia ser transmitida e em que “sirigaita” era o pior xingamento em um discussão acalorada nas novelas das 20h, penso hoje que não era coerente ver um monte de homens vestidos de personagens estranhos dançando na TV. Meus pais sempre tinham que responder à pergunta espantada: Mas esse aí é homem ou mulher? Ou, quando mais notórios: Mãe, por que esse moço tá vestido de mulher e dançando que nem mulher? Era esse um dos programas da família brasileira quase três décadas atrás. Ainda bem que as Garotas do Fantástico já tinham seu espaço nessas noites.

 Longe de qualquer conotação homofóbica ou algo que o valha, meu propósito aqui é mostrar que toda essa manifestação a favor da menina de cabelos de Shirley Temple já deveria ter ocorrido, mesmo que por motivos diversos. Todos nos compadecemos quando vemos uma criança chorando. Mas não era necessário que um promotor ameaçasse o Sr. SS a pagar uma indenização de “UM MILHÃO DE REAIS”, quantia por ele tão falada, para que metade da mídia brasileira noticiasse o fato.

 Aqueles que viram e sofreram algum tipo de censura talvez tenham a impressão de que sugiro qualquer mecanismo externo de repressão. Não, de forma alguma! Apenas acho que a própria sociedade deveria se mobilizar para tirar do ar aquilo que não lhe convém. O boicote, exercício da nossa liberdade, é muito mais eficaz do que qualquer cerceamento de liberdades alheias. Talvez assim nosso consagrado apresentador de madeixas acaju, cujo trabalho é inegavelmente importante para o desenvolvimento da televisão brasileira, observasse a grande admiração que boa parte a população tem por ele, e então pudesse retribuir com respeito e programação de qualidade.

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De sua presença

“Deus me perdoe, se é pecado
Mas eu queria ser fita
Só para andar na cintura
Duma cabocla bonita.”
Versos paraibanos

Abigail - 1947 - Di Cavalcanti

Abigail - 1947 - Di Cavalcanti

Nos olhos dela, um brilho encantador que faz as noites claras de outono parecerem a neblina de inverno. Um castanho profundo e intenso que faria uma certa cigana oblíqua e dissimulada de longas tranças parecer ainda mais pueril do que o fora. Emoldurando este olhar, uma face serena, de maçãs do rosto rosadas de sol e, em momentos particularmente inquietantes, enrubescidas por um acanhamento de que ainda duvido.

Seus cabelos longos e levemente ondulados parecem acompanhar a brisa mansa que de leve toca o mar em fim de tarde. Calma, quente, inesperada mas sempre oportuna. Nesses fios compridos, poderia perder-me e não querer pensar em retorno. Meus dedos os tocariam com a destreza de um artesão e os percorreriam com uma calma monástica.

Delineado de forma ímpar, o colo, que abriga os melhores aromas já percebidos, revela em sutileza a sensibilidade ao toque, ao beijo, ao calor e à gota d’água em noite de garoa. Basta uma delas e, num movimento discreto, ela me transporta ao céu (Prefiro não descobrir se isso tudo é intencional). Nele, o suor que gentilmente toma o espaço é néctar.

Ah, seu andar! Seu andar me encanta pela suavidade e pela certeza de que pode chegar onde quiser. Os movimentos leves de seus quadris parecem me embalar numa viagem eterna a uma terra onde o solo é fértil, a chuva farta e o sol nunca nos desaponta. Entre dois pontos, não há mais um caminho, mas um take em slow motion. Um momento de distorção do espaço e do tempo para que o universo renda as devidas saudações à sua passagem.

Nenhuma teoria ou conceito genético seria capaz de explicar a delicadeza de suas mãos. Seu toque brando e seguro faz com que sua presença jamais seja esquecida. Enquanto fala, o movimento de seus dedos parece reger o mundo ao seu redor. Dois minutos em discurso transformam todos em volta em impecável orquestra. Sua voz, melodia harmoniosa, acolhe, anima, consola e ao mesmo tempo, tira da inércia.

Não há Iracema, Vênus, Cleópatra, Julieta ou Dalila que se aproximem de sua presença. Para que ter apenas os lábios de mel, quando seus amores podem ser mais doces que o vinho? Para que contrapor-se a Marte se, mais que uma alegoria, a coexistência pacífica em um sistema solar há muito existe e por muito ainda sobreviverá? Para que força e poder reafirmados, quando aquilo que é dela faz-se presente sem anúncio? Para que o veneno que engana, quando da verdade de sua existência é que emana a certeza da alegria? Para que deixar que minhas forças sejam roubadas quando seria capaz de entregá-las voluntariamente?

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Da fragilidade e da redescoberta – II edição

Tava ali parado, esperava nada da vida. Naquele momento, muito menos. Dias iguais, noites idem. Coisa alguma no mundo poderia me despertar da inércia. Tolo. Era isso que eu pensava. Um simples descuido, deslize bobo e ela surgiu do inesperado. O que era casual, ou pelo menos, despretensioso, me tomou de repente. O que era aquilo, afinal? Era mesmo o que eu tanto havia esperado e, por isso, não acreditava mais ser possível?

 

Obviamente, minha estupidez habitual não me deixou perceber de cara. Só me dei conta quando, numa noite, algo me parecia faltar… horas e mais horas pensando… uma única imagem na cabeça. Desviei o pensamento, mas não havia porquê fazê-lo. Talvez a razão estivesse no fato de eu não acreditar nem um milímetro em novas paixões. Com outros, sim. Comigo?!… Nem que o céu se tornasse eterna e profundamente vermelho. Do desvio fui ao delírio. Lembrei-me do profundo castanho dos seus cabelos e da forma como eles voavam ao vento suave da orla. Revi sua pele morena que, ao sol de setembro, parecia tingida de canela. Seu cheiro de repente invadiu o quarto e quase holograficamente a vi. Minhas pernas tremeram e o chão parecia estar a quilômetros dos meus pés. Sua voz suave parecia vir de muito perto e já não pude deixar de notar o quanto meu coração estava acelerado. Segurei minhas mãos. Suavam frio como em febre alta.

 

Eu, tão seguro de mim, me vi novamente caído, cercado e sem saída. Tive medo. Por mais que eu dissesse que o passado era algo resolvido, não poderia esquecer que já sofri, e muito, por amores. Primeiro, os não correspondidos. Depois, os impossíveis. Por fim, os mal sucedidos. Mais medo. Na verdade, pavor. A cada lembrança de sua imagem, me via num paradoxo: me sentia seguro e ao mesmo tempo sem o mínimo controle de mim. As ondas de seus cabelos imitando as do mar me deixavam sem reação. O balanço suave de seu corpo caminhando me fazia sorrir. E suas curvas me conduziam sem escalas à felicidade.  Pensei em pedir socorro. Mas a quem?! E por que?! Medo, medo, medo. Era todo esse temor que fazia do céu uma prefiguração do purgatório. E se não fosse possível? E se ela não me notar como espero? E se eu não for aquilo que ela espera? Depois de um passado tão identificado pela perda, a insegurança era parte de mim.

 

Levou tanto tempo pra eu me sentir humano novamente que não podia acreditar. Aqueles sentimentos não faziam mais parte do meu pobre léxico, muito menos da minha medíocre existência fora do mundo real. Como foi bom me sentir vivo novamente. Pela paixão e pela limitação, era eu de novo… aquele que havia esquecido de si num súbito assustou-se com sua condição frágil e tangível. Cansei de resistir. O que virá? Importa menos o que, e mais a essência da descoberta, ou redescoberta, sendo mais exato. À dor ou à felicidade, é a isso que somos conduzidos. Me exponho pra me manter vivo, me mostro pra que não me esconda outra vez.

 

 

 

 

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Sobre o valor

“One too many goals

That measure out your worth

To seek your weight in gold.”

The Next Time Around – Little Joy

 

 

 

O que é suficiente para medir o seu valor? Já ouvi muitos dizerem que valem o quanto têm, outros preferem valer aquilo que são. Há aqueles, contudo, que insistem em dizer que valem aquilo que sabem. Talvez eu tenha começado esse texto de forma equivocada. Talvez seja mais correto pensar em “O que é o valor do homem?” ou “O que é capaz de dar valor a uma pessoa?”.

 

Acho que se formos procurar com atenção pelo passado remoto, lá na Grécia antiga alguém já dizia que uns valiam mais que outros. Se sou instruído, valho mais. Se tenho bens, ainda mais. Não quero ficar aqui procurando as razões ou sementes sociais desse tipo de julgamento. Quero é deixar uma pulga atrás das orelhas, encostar o dedo nas feridas das nossas hipocrisias que nos estabelecem escalas de valores, e ainda questionar se isso tudo é objetivo ou apenas social.

 

Quando somos pequenos, ouvimos dos mais velhos que devemos ser bons, obedientes, solícitos e, de preferência, agradáveis às pessoas. Tudo isso pode se tornar uma grande confusão ao crescermos, afinal nessa fase temos que aprender a viver num mundo competitivo. E o que isto tem a ver com os conselhos da vovó? Se competimos, é porque tentamos fazer valer nossa voz, ganhar nosso espaço e ter reconhecimento. Para isso será impossível evitar o embate de vontades, o conflito real de interesses. Nem todos foram criados sob as mesmas regras familiares que nós, assim, os conceitos de bondade, solicitude e cordialidade assumem as mais diversas conotações para as pessoas com quem convivemos. Nesse cenário, será impossível ser agradável como a mamãe gostaria.

 

Espera aí, leitor, a mamãe gosta que você seja agradável, mas não que você seja um merda, um loser. Você tem que ser o fodão. Desculpem-me aqueles que se chocam com as palavras, mas elas não são minhas. Dr. Francisco D. da Veiga, em seu curioso O Aprendiz do Desejo, nos apresenta o dilema do fodão-merda, e foi daí que vieram as expressões de seu choque. Trazendo a uma linguagem mais branda – afinal, quem sou eu pra desobedecer às matriarcas e bancar o mal-educado? – você precisa ser forte, bom, bem-sucedido, esperto, bonito, inteligente, ou como sugeriria Darwin, o mais adaptado da sua espécie. Além disso, você precisa conquistar, pois um homem se mede por suas conquistas.

 

E voltamos ao ponto inicial, “um homem se mede por…”. Gastamos muito tempo de nossos dias pensando em como somos vistos, se somos respeitados, se nosso trabalho é reconhecido ou se as pessoas enxergam o quanto tivemos que dar duro pra chegarmos onde chegamos. Ué, o caminho que escolhemos não deveria ser pessoal? Então por que eu fico observando o que os outros dizem da minha trajetória? É isso! Tenho a impressão de que muito poucas vezes nos importamos realmente com o que fazemos ou o que pensamos a respeito de nós mesmos. Noto que faz parte do comportamento comum fazer as coisas esperando reconhecimento. Não como o interesseiro, mas como quem quer ser aceito e bem visto.

 

Eu não seria capaz de incitar, com isso, um comportamento de isolamento. Muito pelo contrário, talvez seja necessário conhecer-se para conviver de forma mais branda consigo e com o outro, o temível “outro”.

 

Já que passamos por essa história de trajetórias, também questiono o fato de sempre ter que saber onde o caminho vai levar. Obviamente todo caminho leva a algum lugar, mas as pessoas insistem em saber onde você quer chegar. Então, onde fica o prazer do caminho em si quando só se pensa na chegada? E não é possível estar realizado durante uma caminhada? Duvido que não. Pense na simples metáfora de duas cidades que distam mil quilômetros… não sou capaz de só enxergar partida e chegada, há mil quilômetros a serem descobertos e aproveitados, dezenas de cidadelas e lugares ainda não vistos. Pessoas diferentes e hábitos absolutamente estranhos ao meu mundo. Definitivamente, o destino final começa ao largar o ponto de origem.

 

Mais uma vez retomando a questão central, ainda não entendo por que eu teria mais valor do que uma criança numa rua de Mumbai. Ou por que o presidente da empresa em que eu trabalho vale mais que o bilheteiro do cinema a que vou toda semana. É claro em meu raciocínio que os bens passam, os cargos são substituídos, o corpo se desgasta e, com ele, o cérebro e boa parte do conhecimento adquirido. Indo um pouco mais longe, até as convicções são passíveis de mudança.

 

Peço sinceras desculpas a quem achou que eu abordaria o “viva à sua maneira, não perca a estribeira, saiba do seu valor” (deveria um autor ficar preso àquilo que agrada seus leitores?), mas acho mais honesto tentar fazer você pensar que essa história de ter um valor é, pelo menos, um pouco descabida. Com o passar do tempo, muito do que vemos e temos hoje ruirá. E aí eu pergunto: O que vai valer nesse momento?

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Apoteose

Estrear um novo blog. Querendo ou não, há algo de responsabilidade no ar. Depois de quase dois anos e meio sem publicar uma linha, resolvi por as mãos à obra novamente. Domínio registrado, ideia concebida, mas o mesmo problema se mostrava. Como começar? Todo mundo quer um início brilhante, um primeiro texto de impacto, algo que prenda o leitor e o faça voltar sempre que puder.

 

Mas sabemos que a vida não é brilhante todos os dias, há aqueles mais cinzentos, aqueles mais turvos. Venha então o início como deve ser, como hoje, como ontem… um dia normal. E não veja nada de pejorativo nisso. Quando digo normal, quero dizer “venha como vier e seja bem-vindo”.

 

Mas o que me tirou então da inércia? Aqueles que me conhecem devem pensar que foi o show do Los Hermanos anteontem na Apoteose. Depois de dois anos, o reencontro para uma apresentação preparada para fãs, com direito até a “Cher Antoine”, realmente não me deixaria da mesma forma que entrei ali. Mas a gênese do texto não estava ali. Uma hora e meia e um Kraftwerk depois, começava a ser concebida essa quase-epístola. Era real a presença do Radiohead aqui.

 

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Como admirador tardio, confesso que durante muito tempo só ouvia “Creep”, “Fake Plastic Trees”, “High and Dry” (resgatada pelo Jamie Cullum à minha lista de mais ouvidas) e de repente uma ou outra faixa perdida. Até tentei ouvir algo mais, mas acredito no momento do encontro e ele ainda não havia acontecido. Passado um tempo, até conheci outras faixas e reconheci que eram boas, mesmo assim não ganhavam espaço no player.

 

Acho que e a história mudou e o tal encontro aconteceu quando resolvi comprar o ingresso pro show ainda na primeira semana de vendas. Leia isso: na primeira. Eu sequer sabia que os Hermanos abririam o show, mas já iria ver os caras de Oxford no palco. Como músico, tive a imensa curiosidade de saber como aquilo funcionaria na real. A tal história continuou em mudança quando resolvi ouvir mais músicas porque detesto ser pego de surpresa num show, sem conhecer metade do que se toca. Conclusão: In Rainbows e OK Computer já figuram no meu rol de álbuns brilhantes. Mas vamos ao show, que é o que interessa.

 

Durante um pouco mais de duas horas, Tom Yorke me provou que uma banda tida por muitos como deprê pode ter uma energia de palco fantástica. “15 Step” é perfeita para abrir um espetáculo como aquele. Enquanto vinte e quatro mil pessoas tentavam acompanhar a música, o verso que mais me representava era “Did the cat get your tongue?”. Como minha avó dizia, o gato tinha comido minha língua e eu estava speechless. Um Yorke impressionante com seus companheiros de palco chegaram sem saudar o público, até um simpático “Boa noite, nós somos o Radiohead” quebrar o gelo. E quem não sabia quem são eles? Tudo bem, ouvi a mesma tirada no último show do R.E.M. por aqui, em novembro passado.

 

“Airbag” em seguida mostrou que a noite não seria pouca coisa e “There there” me fez ter o primeiro momento de alumbramento com um palco impecável. No meio de um cubo iluminado, a banda fazia sua performance, com o telão ao fundo mostrando seus integrantes a partir de câmeras em posição pouco convencional. Não só a concepção do palco, mas seu funcionamento, impressionava a cada faixa. Um espetáculo de luz e efeitos: clima calmo, chuva, céu estrelado, planos móveis. A sensação que fosse desejada poderia ser conseguida com aqueles efeitos luminosos.

 

Para aqueles que, como eu, duvidavam, as faixas do Kid A funcionam ao vivo sim. “No surprises” fica excelente com o público cantando, e uma câmera em super close de Yorke com um perdido Jonny Greenwood ao fundo podem ter um efeito de imagem excelente. Para aqueles que esperavam tanto, “Paranoid Android” foi catártica, purificadora. Obviamente, não podemos deixar de notar uma cordialidade incomum, e a execução já esperada de “Creep” depois do show do México.

 

Diante do efeito causado, não posso esquecer de dedicar esse primeiro post ao Gustavo, há 12 anos meu irmão,o cara que me ensinou a gostar de Radiohead, que me fez comprar o ingresso ainda em dezembro, mas que ficou a 2200km da celebração esperada. Salve Picos, salve Rio, salve Oxforshire.

 

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